Até 25% das mães que abandonam seus filhos sofreram maus-tratos na infância, dizem especialistas.
“Abandonei meu filho porque queria ir no bailão”. Tanto a frase quanto o ato de abandonar um bebê podem parecer absurdos, mas para psicólogos e psiquiatras acostumados a tratar mulheres com transtornos de personalidade isto é comum e deve ser compreendido. Os especialistas ouvidos pelo UOL Ciência e Saúde concordam que mulheres que deixam seus filhos sofreram graves abusos quando eram crianças e, por isso, não desenvolvem o sentimento de amor e a relação da maternidade.
Para Joel Rennó Júnior, coordenador do projeto Pró-Mulher do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, de 10 a 25% das mulheres que têm bebês apresentam transtorno de relacionamento mãe-bebê. Este transtorno de personalidade não existe nas classificações oficiais de psiquiatria, mas deve ser incluído no novo manual de diagnóstico de saúde mental (DSM-5), que será publicado em 2013.
O psiquiatra, que presta assistência médica e psicológica a mulheres com distúrbios psíquicos relacionados ao ciclo reprodutivo feminino há mais de 10 anos, afirma que estas mulheres desenvolvem uma raiva e rejeição que atingem níveis patológicos e que não estão associados a depressão.
São mulheres que sofreram rejeição, abuso físico e moral, negligência e violência na infância. “A noção de mãe está muito desestruturada nestas mulheres. Muitas delas também não tiveram uma mãe que cuidasse delas”, afirma Catalina Camas Cabrera, psiquiatra do Hospital das Clínicas, que trabalha com o grupo CA Vidas, com mulheres vítimas de abuso.
“Para se tornar um ser humano biologicamente cultural é preciso do afeto de outro ser humano, que cuide, atenda e ame. O amor foi descoberto como uma necessidade primária. Eu não sobrevivo, ou sobrevivo muito mal, se eu não tenho cuidadores que tenham amor incondicional. Não me entendo por gente, não tenho empatia, não consigo amar outros”, diz a psicóloga Lidia Natalia Dobrianskyj Weber, professora da Universidade Federal do Paraná.
A frase que abre esta reportagem foi dita à Weber em uma pesquisa com mães que abandonaram seus filhos em hospitais ou deixaram para outros criarem. Foram entrevistadas 21 mulheres que seguem o perfil e outras 21 com o mesmo nível sócio-econômico, mas que criaram seus filhos. A única diferença entre elas era o tratamento que tinham recebido dos pais.
“Todas tinham a mesma escolaridade, muitas tinham companheiro na época. A diferença estatística forte era que as que abandonaram tinham claramente uma história de abandono, negligência e violência em casa. Essas mães que abandonam nunca foram filhas. Elas nunca foram sujeito de afeto e não entendem isso como importante”, explica Weber.
Entender em vez de condenar.
A professora destaca que é preciso entender como eram as famílias dessas mães, saber como elas foram tratadas na infância. “Alguns relatos são chocantes, mas é preciso entender esse outro lado. Elas não passaram por um processo de vinculação afetiva”.
Rennó concorda: “Temos que entender esse perfil, onde a mulher tem suas estruturas psíquicas abaladas. Ela foi abusada, rejeitada e isso deixa uma impressão que acaba passando para o filho. A criança traz todo o significado de rejeição, que algumas nem querem sentir”, conta.
Entretanto, ele destaca que o transtorno de relacionamento mãe-bebê não pode ser aplicado genericamente para todas as mães que abandonam seus filhos. “O diagnóstico é categorial, baseado em um manual com critérios que englobam sintomas psíquicos discriminadores".
Cabrera, que atende mulheres vítimas de violência desde 1998, diz que muitas dessas mulheres são entendidas como pessoas más, mas que a maioria delas tem auto-estima baixa e tomam a atitude de abandonar o bebê em um momento de desespero.
Vergonha
Uma das questões levantadas é porque estas mães não entregam o filho para o juizado ou para a adoção. Para Weber, especialista em abandono e adoção de crianças no Brasil, entregar a criança para a adoção também é um abandono e as mulheres sentem vergonha de assumir isso em público. “Muitas não sabem que podem deixar seu bebê para adoção, que isto não é crime, e há toda a questão cultural do instinto materno, do amor, que ela não sente”.
Segundo a psicóloga, a criança adotada é mais feliz do que a rejeitada que é criada pela mãe. “Uma pesquisa acompanhou o desenvolvimento de crianças por anos e concluiu que as que foram abandonadas e depois adotadas apresentam melhores resultados cognitivos e psicológicos do que aquelas que a mãe teve o desejo de abandonar, mas não abandonou”.
Depressão pós-parto
A depressão pós-parto, apontada por muitos leigos como causa para tais atos, é excluída como causa principal pelos especialistas. “Cada caso deve ser analisado individualmente, mas a depressão pós-parto não se parece com a atitude destas mães. Elas acreditam que fizeram o melhor para o bebê e para si próprias”, diz Cabrera.
De acordo com Rennó, as mães com depressão pós-parto se sentem culpadas por não terem energia para cuidar do bebê e acabam deixando a tarefa para alguém da própria família.
A falta de culpa é um ponto destacado pelos especialistas, o que leva também, à maior dificuldade de encontrar estas mulheres, já que elas não buscam ajuda e não são identificadas ao abandonar seus filhos. “Elas não acreditam que alguém possa ajudá-las. São pessoas que precisam ser ajudadas e não julgadas”, ressalta a psiquiatra.
O papel do Estado
Weber acredita que o Estado deve ter maior cuidado com a família. “O papel do Estado vai desde desmistificar a culpa até acompanhar e aconselhar tais mulheres. Na França existe um programa de abandono de bebês institucionalizado. A mãe pode optar em ter o bebê e entregá-lo a adoção. Ela tem toda a assistência que necessita, que a ampara e a faz refletir”.
Ela acrescenta que é necessário ainda quebrar o círculo vicioso que temos hoje. “Cerca de 88% das crianças institucionalizadas dizem que apanham ou já apanharam. Há negligência e violência nas famílias, o que só aumenta a probabilidade de que um mulher abandone ou rejeite seu filho no futuro”, diz.
“Não há uma estatística oficial de quantas crianças são abandonadas. Grande parte delas não entra nas estatísticas porque vão para a adoção informar -- quando a própria mãe já encaminha a criança para quem tem interesse em criá-la”, afirma.
Weber conclui que o abandono de crianças está presente na história da humanidade há centenas de anos. “Toda a antiga bíblia e mitos estão recheados de abandono de crianças. Era comum até o renascimento, como uma forma de minimizar o infanticídio”, conta.
(Fonte: Portal UOL, citado pela Agência Matraca de Notícias da Infãncia)
Meu comentário:
“De acordo com o SIPIA/Sistema de Informações para a Infância e a Adolescência, uma rede do governo federal, e de acordo com os registros de atendimento do CONTUA/Conselho Tutelar de Açailândia, o maior número de violações dos Direitos de Crianças e Adolescentes ocorrem justamente na área da Convivência Familiar e Comunitária, na maioria por abandono e negligência material e intelectual dos pais/família, que levam também a maus-tratos, abuso sexual e violências de todo tipo.
Nas unidades de acolhimento institucional (antigos abrigos) de Açailândia, por exemplo, a maioria dos/as acolhidos/as sofreram aquelas violações e violências.
Um caso típico é de uma mãe, que tem três filhos acolhidos, em épocas diferentes no espaço de anos, além de outros três filhos (dois ‘dados’ e outro já adotado) e um falecido. Essa mulher não tem nem trinta anos de idade...
É de espantar essa realidade em Açailândia, fazendo jus a onda (onda, não, tsunami...) de indignação e repúdio levantada em todo o Brasil, com a divulgação maciça pela “grande imprensa” de casos de chocar: bebê abandonado em lixeira; bebê abandonado em quintal; bebê abandonado em beco; mãe condenada por abandono de bebê em lagoa; procuradora condenada por maus-tratos a menina que queria adotar; mãe presa por morte, talvez de fome, de filho e maus-tratos a filha, e por aí afora...
E depois ainda tem gente com coragem e atrevimento de desancar os Direitos de Crianças e Adolescentes, achando que eles são desnecessários e outras baboseiras...
Mas é preciso a lei, a repressão, a pena, na tentativa de coibir no mínimo a explosão dessa violência absurda, como também é preciso outro olhar paras as mulheres, para os outros, afinal, não é se jogando pedras e condenando sumariamente que se vai resolver...
Êta mundão civilizado, moderno, globalizado, democrático, cristão, que trata tão suas Crianças, que tratarão também tão mal seus filhos, e a por aí vai, num ciclo interminável que se intensifica e se agrava sempre mais...”.
O artigo acima nos remete às responsabilidades da sociedade, mas sobretudo do Estado/governos, estes sim com a obrigação maior e inadiável de assistir melhor as famílias e comunidades, efetivando políticas públicas eficazes, que encarem seriamente a gravíssima “questão social”, seja ela nacional, estadual, ou municipal.
“Planejamento familiar, pré-natal, atendimento pós-nascimento, educação, educação, prevenção, prevenção...” e por aí vai, seriam essas políticas públicas...”
Fonte: Blog do Eduardo Hirata
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